terça-feira, 21 de outubro de 2008

A Esbofeteada *


Arlinda – Já sabes da nova, Ismênia? Sabes que Gracinha e Sinval voltaram da lua-de-mel, semana passada?
Ismênia – Ai, Arlinda, nem me fale, nem me fale nessa criatura. Aquela ali é uma des-graça, isso sim.
Arlinda – Pois é, menina. Mas eu lhe digo uma coisa, eu tenho para mim que tudo começou naquele dia em que você contou a história do tapa.
Ismênia – (Em outro foco e momento, no passado, conversando entre amigas) Vou te contar! Como meu namorado, eu confesso francamente: nunca vi! Tem um gênio! Que gênio!
Arlinda – Feroz?
Ismênia – Se é feroz? Nossa! Precisa uns dez para segurar! (Olha para os lados e baixa a voz) Vocês sabem o que é que ele fez comigo? Gracinha – O quê?
Ismênia – (Fazendo-se de rogada) Não sabem?
Arlinda – Ah, conta! Conta, Ismênia!
Ismênia – Foi o seguinte: ele cismou que eu tinha dado pelota para o Nemésio. E não conversou: me sentou a mão, direitinho!
Gracinha – E tu?
Ismênia – Eu? (Erguendo o rosto, feliz, envaidecida da bofetada) Eu vi estrelas!

(Silêncio. Admirada, Arlinda parece invejar a agressão que a outra sofrera, enquanto que Gracinha, mais impressionada ainda, contém um muxoxo de reprovação, crispando-se de asco e deslumbramento.)

Ismênia – Eu apanhei! Eu! Comigo é assim: gosto de homem, homem. Escreveu não leu, o pau comeu. Senão, não tem graça.
Arlinda – (no presente, com Ismênia) Ah, minha filha, e você sabe o que ela me disse mais tarde, quando você foi embora, né? Tão cínica! Quem diria.
Arlinda – (no passado, a sós com Gracinha) Quem diria, hem! Logo o Sinval! Há quem diga que falta-lhe a base física da coragem. Aquelas unhas todas tratadinhas. Custa a crer que seja um violento. Não achas, Gracinha?
Gracinha – Sabe o que eu acho? Eu acho que, se um homem me esbofeteasse, eu dava-lhe um tiro na boca!
Arlinda – (no presente, relembrando os pensamentos que tivera naquele momento) Que tiro, que nada! Foi o que eu pensei, na época. A exaltação dessa aí é que nem cólera de passarinho. Mas depois fiquei com a minha cara no chão.
Ismênia – Pois é, aquele jeitinho meigo, doce. Quem quiser que se engane. Mas o que eu queria muito saber, mesmo, é como foi que eles começaram, de fato, essa relação.
Gracinha – (em outro foco) Elas (ou “Vocês”) têm razão. Acho que tudo começou com a história do tabefe que Ismênia levou. Eu fiquei tão indignada na época, que, por três dias, não pensei noutra coisa. E, no quarto... eu não resisti.
Gracinha - (em outro momento, no passado, falando para si) Ah, eu não resisto. Eu preciso falar com esse Sinval. Nem que seja passando um trote, sei lá. (Surpresa com o que acaba de dizer, olha com malícia para o telefone e, súbito, decide ligar)
Gracinha – (ao telefone) Sinval? Aqui quem fala é Zumira... prima do Barriga.
Sinval – (em outro foco) Barriga? Que Barriga?
Gracinha – É... Barriga... Barriga, amigo de Pato Preto.
Sinval – Pato Preto? Ahn?
Gracinha – Mas, enfim, eu tô te ligando pra dizer que andam falando uma coisa de você... que é de arder, é de amargar. Ai, eu nem sei se eu deveria dizer.
Sinval – Fala.
Gracinha – Barriga tentou até te defender, mas... Poxa, nem sei como falar.
Sinval – (entrando no jogo) Mas vem cá, você disse que é prima do Barriga, né? E qual é a sua graça?
Gracinha – Eu? Ah, não importa. O negócio é que andam falando absurdos de você. E aí eu queria saber se era verdade, sabe, pra você não ficar mal falado no pedaço.
Sinval – Hum.
Gracinha – Sabe quem é amicíssimo do irmão de sua namorada? Pato Preto. E ele disse que seu cunhado estava dando pinote por causa da notícia que anda circulando...
Sinval – (caricioso) Ô, mocinha, qual o seu nome?
Gracinha – Meu nome não interessa, já disse.
Sinval – Olha, se não disser o nome, eu desligo.
(Breve silêncio.)
Sinval – (irredutível, porém suave) Fala. Ou então eu desligo, ouviu? Qual a sua graça?
Gracinha – (sente que vai recuar, mas, subitamente, invade-lhe uma estranha coragem, e confessa) Sou eu, Gracinha. (Imediatamente arrepende-se de tê-lo feito)
Sinval – (transfigurado) Gracinha? Não é possível, não pode ser!
Gracinha – Sou eu sim.
Sinval – Então houve transmissão de pensamento! No duro que houve! Imagine que eu estava pensando em você, neste minuto! Agora mesmo!
Gracinha – Pensando em mim?
Sinval – (na sua efusão elétrica) Sim, em você. (doce) Penso em você sempre. Há muito tempo.
Gracinha – (com o coração disparado) E Ismênia?
Sinval – Ismênia é uma brincadeira, um passatempo, nada mais. Você, não. Você é outra coisa. Diferente!
Gracinha – Não acredito. Não é possível.
Sinval – Te juro, pela minha mãe, que é a coisa que mais prezo na vida. Te juro que é pura verdade! E tem mais, para te provar que o que eu sinto é batata, eu quero te ver amanhã. Topas?
Gracinha – O quê? Onde?
Sinval – No passeio público, às 15h, combinado?
Gracinha – Eu... eu não... (pigarreia) eu não sei.
Sinval – Ah, Gracinha, diz que sim. Diz que sim, por favor.
Gracinha – (depois de um profundo suspiro) Ok. Está bem. Combinado.
Sinval – Então até amanhã, minha linda. Um beijo.
Gracinha – (quase sem voz) Outro (desliga).
Gracinha – (com as pernas bambas) Ai meu Deus, e agora? E agora? (andando de um lado para o outro) Eu não deveria ter dito meu nome. Aliás, eu não deveria nem ter ligado! O que que eu fui fazer, meu Deus? E agora? Já sei. Não vou, pronto. Não vou e está acabado.
Gracinha – (foco anterior: narração) Mas eu fui. E lá ele foi mais decisivo ainda, mais evidente (Gracinha e Sinval aproximam-se, no centro do palco) e tão romântico!
Sinval – (no passeio público com Gracinha, no Passeio Público) Te vi, no máximo, o quê? Umas oito vezes, dez, talvez. Falei contigo pouquíssimo. Mas, assim ou assado, o fato é que te amo, te amo e te amo!
Gracinha - (narrando) Ah! Eu não duvidei. Acreditei nele, porque comigo também já se passava o mesmo, uma dessas paixões definitivas, reais e mortais. Então começaram os nossos encontros, às escondidas. Gracinha – (estreitada nos braços do amado) Ai, Sinval, eu só não sou mais feliz por causa de Ismênia. Eu fico só imaginando, no dia em que ela souber...
Arlinda – (outro foco, para Ismênia) E quando você soube, amiga. Lembras? Eu flagrei os dois juntinhos e fui correndo te contar. Me lembro nitidamente do escândalo que foi.
Ismênia – (discutindo com Gracinha) Tu és mais falsa do que Judas! Sua cobra criada! Amiga da onça! Mas escuta uma coisa, sua cretina. Escuta bem, cínica. Tu hás de apanhar e muito nessa cara!
Arlinda - (narrando) Ela não disse palavra. Estava lá, toda pálida, incapaz de uma reação.
Gracinha – (narra, numa espécie de disputa com Arlinda) É, o constrangimento da situação foi muito grande. Mas depois foi festa. (uma festa começa a ser montada no palco) Apesar do escândalo, aquilo foi bom, porque então nós dois pudemos oficializar nosso romance e mostrar, para quem quisesse ver, o carinho que sentíamos um pelo outro.
Gracinha - (beija Sinval, na festa, em casa de amigos) Não é, meu amor? (Gracinha tenta arrastar o namorado para a pista de dança, mas ele pretende jogar uma partida de sinuca com o amigo) Agora vamos dançar, querido.
Sinval – Ah, agora não, meu amor, eu quero jogar um pouquinho. Depois eu danço com você. Dança com o Carlinhos, por enquanto, ou com outro rapaz aqui da festa.
Gracinha – Você não tem ciúmes?
Sinval – Ciúmes de você? Não, meu bem.
Gracinha – (admirada) Por quê?
Sinval – Porque te amo.
Gracinha – Eu preferiria que tivesses ciúmes de mim.
Sinval – (achando graça) Ué!
Gracinha – (sentindo-se infantil ao repetir a frase que ouvira, não sabia aonde) Pois, “Sem ciúmes, não há amor”!
Sinval – Ora, parece criança!

(Sinval volta-se em direção à mesa de bilhar, mas ela o retém, segurando-o pelo braço)

Gracinha – E se eu te traísse? Tu farias o quê?
Sinval – Te perdoaria.
Gracinha – E se eu voltasse a trair?
Sinval – Se continuasses traindo, eu continuaria perdoando.

(Gracinha dá-se por vencida pela resposta do namorado e vai procurar um par para dançar, enquanto ele vai para a mesa de jogo. Gracinha arranja um par. Começam discretamente e, ao longo da música, a dança vai-se tornando cada vez mais chamativa. Depois ela e seu par vão sentar-se no sofá. No caminho, Gracinha pega uma bebida. Sinval joga sinuca dentro ou fora de cena, e ela conversa com seu parceiro de dança no sofá, bebendo muito e insinuando-se expressivamente para ele. Durante o desenrolar da ação, Ismênia e Arlinda conversam em outro foco)

Ismênia – (em outro foco, para Arlinda) Sabe o que me consola? Aqueles papelões que a gente ouvia falar dela.
Arlinda – E foram vários! Ela realmente mudou da água para o vinho.
Ismênia – De bonequinha para uma tremenda vadia!

(Quando a bebida acaba, ela vai atrás de outro rapaz, que segura um copo, em outro canto do salão. Pede-lhe a bebida e começa a se engraçar para ele. Os dois dançam de maneira extremamente chamativa e sensual. Todos na festa começam a abandonar o local. Entra Sinval. O par, assim que o vê, pigarreia e desaparece.)

Gracinha - (bêbada, encara o namorado, rindo) Ele me beijou, Sinval. Me beijou.

(Sem uma palavra, Sinval a derruba com uma tremenda bofetada. Ela cai longe, com os lábios sangrando. Enquanto ele a contempla e espera, ela aproxima-se, rastejando e abraça-lhe as pernas.)

Gracinha – (soluçando) Esperei tanto por essa bofetada! Agora eu sei que tu me amas e agora eu sei que posso te amar.

Por Monique Monteiro
*Adaptado do conto "A Esbofeteada" da obra "A vida como ela é" de Nelson Rodrigues. Este conto não foi incluído no texto final de "Atire a primeira pedra".

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