quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Jacques de Beauvoir comenta Atire a Primeira Pedra

Jacques de Beauvoir
Oh! Que delícia de peça

Domingo passado fui ao Martim Gonçalves (Escola de Teatro da UFBA, Canela) e fiquei duplamente feliz de encontrar minha querida escola completamente repaginada e assistir a uma montagem de graduação, apaixonante. No palco, Atire a primeira pedra, baseada em contos da coluna A vida como ela é..., publicados no Jornal Última Hora, durante o ano de 1961, pelo dramaturgo Nelson Rodrigues. A direção de Luiz Marfuz é sempre muito boa e para esse trabalho rodriguiano, ele pôde realmente mostrar aquele seu jeito "descaradamente" inocente e às vezes mordaz na condução de um trabalho do autor que gostava de passear pela tragicomédia da vida humana em seu cotidiano. O texto muito bem arquiteto em adaptação de Cleise Mendes e Fernando Santana prioriza a ótica feminina no universo de Nelson e retrata uma época marcada pela lei patriarcal e a decadência da classe média - amarrados em dez cenas onde as mulheres explodem desejos reprimidos e fazem valer sua vontade, pagando por isso preços altos (essa frase final foi tirada do release). A montagem atualiza o brega e o kitsch, ingredientes que as pessoas fazem questão de abominar, mas que na verdade, adoram. A "brincadeira" mostrada no palco está isenta de preconceitos, rodeios, sem máscaras. Como o diabo gosta e nós também. O elenco (que sabe o que está fazendo) brinca de tragédia grega (coro), teatro de revista, melodrama, humorístico de TV. Tudo compactuado com a equipe entrosada e que sabe dá o tom para um bom espetáculo: coreografias (de Marilza Oliveira que compartilha com a platéia o sabor da curtição), Iluminação (Fernanda Paquelet), figurino hilário (Miguel Carvalho), cenografia (Rodrigo Frota), maquiagem (Roberto Laplane), preparação de voz (excelente trabalho de Iami Rebouças), preparação corporal (Tânia Soares), direção musical (Luciano Bahia) e preparação de canto (Marcelo Jardim). Espetáculo à parte - os jovens e maravilhosos atores do grupo Os 50'Tões, formado por estudantes que ingressaram na Escola de Teatro da UFBA em 2006 e agora realizam sua montagem de formatura no Bacharelato de Interpretação Teatral. O grupo - que já apresentou em Salvador, Larilará Macunaíma Saravá, direção de Hebe Alves, Perseguição e Assassinato de Jean-Paul Marat, dirigido por Daniel Marques e Uma Visita à Casa de Bonecas, direção de Carol Vieira e Iami Rebouças - é um rebanho de talento: canta, dança, interpreta e se entrega de corpo e alma. Exatamente por isso e por amar o teatro, 50´Tões celebra com Atire a primeira pedra os 50 anos da Escola de Teatro. Fica em cartaz somente hoje e amanhã, às 20h. A entrada e franca. Vá correndo pegar sua senha e bom espetáculo!

Texto do jornalista e colunista Jacques de Beauvoir, publicado na coluna de arte do site Bahia Vitrine no dia 12/11/2008. Para conferir, clique aqui.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Marcelo Benigno comenta Atire a Primeira Pedra


ESPETÁCULO DE FORMATURA: Os Cinquentões da Escola de Teatro e Nelson Rodrigues

De cinta liga e salto alto!
Atire a primeira pedra quem não gozou com os Cinquentões!
Espetáculo de Formatura da Escola de Teatro, baseado nos contos de Nelson Rodrigues, surpreende pela qualidade e profissionalismo.


Assisti hoje ao espetáculo de Formatura dos Cinquentões, grupo de alunos do curso Interpretação, da Escola de Teatro da Ufba. O autor escolhido foi o nosso Nelson Rodrigues, em adaptações de alguns de seus contos feitas pelas mãos sábias da dramaturga e professora Cleise Mendes e por Fernando Santana, aluno formando desta turma.Logo na primeira impressão notamos uma produção muito bem cuidada, desde o material de divulgação, às camisas e programas do espetáculo.

É de se admirar a qualidade de todo o conjunto da obra para um resultado de espetáculo produzido como final de curso na Escola. Falo isso porque muitos ainda acham que não se precisa ter um rigor com o resultado de final de curso ou disciplina, como se na vida empenhássemos só 50, 40 ou 20% da nossa força, garra e trabalho. Talvez seja esta uma das poucas qualidades do Módulo ao qual a Escola aderiu.

Ver o resultado daqueles sátiros e bacantes em cena, com tanta qualidade e força, faz qualquer aluno da Escola, ou melhor, ex - aluno, (enfim me formei!) feliz, ou com vontade de entrar em cena e se jogar numa volúpia rodrigueana.

Marfuz acerta mais uma vez, com uma direção que privilegia o que cada ator traz de melhor. Muitos atores se assustam com este diretor-professor pela doçura que trata sua trupe. Estamos mais acostumados com o estereótipo do diretor “cavalo” e mal humorado, que desconta tudo no seu elenco...
Neste desafio de transformar um autor marginalizado em comercial e acessível, o recurso do melodrama caiu como uma luva! As músicas “bregas” e a trilha musical foram um atrativo à parte, salve, salve Luciano Baia, dando ambientação as cenas e identificação ao público, que não se conteve em acompanhar algumas das músicas e aplaudir, várias vezes em cena aberta, a atuação do elenco.

É lindo ver em cena atores cantando e dançando, longe de um realismo patético, com marcações mais televisivas que teatrais, com pausas longas, compenetradas ou exageradas que ainda sobrevoa a Escola de Teatro.

A coreografia de Marilza Oliveira trouxe brilho à encenação, não só quando ela é perceptível como no dançar na cena Veneno, onde Liliana Matos, em ótima performance, flutua com o coro em suavidade, como também nas ações cotidianas marcadinhas, em ações e trocas precisas de adereços e figurinos.

Este universo teatral acaba revelando as aptidões dos atores, que ora dançam, ora cantam afinados, com o sorriso interno e a cara de diva de Marcelo Jardim, ou que se exibem com uma luz quase cinematográfica de Fernanda Paquelet; aos figurinos funcionais e quase típicos de Miguel Carvalho, (as roupas da festa de casamento estão um mimo); os saltos altos e cintas-liga bem cuidados e fundamentais; a maquiagem sempre ótima de Beto Laplane, e os cabelos de Deo Carvalho. A equipe toda é enorme e de primeira linha, e faz jus ao resultado conferido, um luxo necessário, que na realidade é difícil e caro de se achar nas produções baianas.

O Cenário é extremamente funcional, amplo, e o maguenta impera no nosso sangue, com requintes e detalhes como as penteadeiras e seus abajures atrás da cena, as cortinas que dançam a cada momento nas suas transparências e tons rubros, às marcações só com as mesas que se transmutam em várias posições como o Kamasutra, enchendo a imaginação de qualquer mortal mais criativo, ao fio luminoso que demarca o palco, aceso em momentos estratégicos, que nos convidam para um cortezano tinto ou um vermute, nesse bar rodrigueano que todos se mostram.

Haja tabela de Pavis para analisar este espetáculo!

Marfuz foi dosado nas cenas mais picantes, trazendo verossimilhança à cena sem agredir, raro em espetáculos que tocam na sensualidade ou que falam de Nelson.

O único nu é na cena-conto: Noiva da Morte, onde o ator Fernando Santana (Alipinho), despe-se totalmente de costas. A cena teria ganhado mais poesia se fosse feita antes de uma cena tão alegre, pois a magia deste momento foi cortada pelos risos de alguns, na platéia, com a nudez do ator.

Outro ganho da montagem é o trabalho de ator, pois num grupo de 19 atores, com 5 homens e 14 mulheres, elas roubaram mesmo a cena, embora a unidade do elenco é impressionante para um grupo tão distinto.

Não posso deixar de falar das duas conquistenses em cena, Danielle Rosa e Milena Flick, respectivamente representando a mulher mais rodrigueana que conheço e a menina doce que cresce. Ambas estão exuberantes em cena, representando dignamente o artista do interior e o trabalho de grupos de teatro efetivos, além dos impagáveis e timbrados Caliban e Joedson Silva, que arrancaram aplausos (ta vendo, mais aplausos!) em cena aberta, com suas criações.

Acho que tanta qualidade se vê pela dedicação do elenco em ensaios diários e longos, que puderam questionar alguns. Tal disciplina teatral mostra a estudantes de teatro a realidade da profissão. Ora, este estudante não será formado para o mercado de trabalho?! Na Vida como ela é do teatro real, os atores e as montagens profissionais, ou os poucos grupos de teatro, ainda existentes na capital, ensaiam várias vezes, com horários os mais variados e complicados possíveis, fazem produção, figurino, maquiagem, trabalham fora, dão aulas, correm atrás de editais, apoios, público, cachê...

Devemos “formar” este aluno para a realidade que ele enfrentará. Nesse meio artístico e profissional não dá para brincar de ser ator ou artista! Ou sofre agora e percebe que o pau é mais embaixo, ou muda de profissão! E para os mais sonhadores, TV não é teatro!

É estimulante ver jovens tão talentosos, que espero encontrar lutando pelo teatro e mercado baianos, criando ou ingressando em grupos efetivos de teatro, e finalmente, brigando por uma Escola de Teatro mais plural, com espaço para todas as linguagens teatrais.

E um conselho do colega aqui, se joguem nesta produção e entrem e cartaz logo, pelo amor de Dionísio, pois Salvador urge de espetáculos com esse refinamento e qualidade!

Não deixe Nelson morrer nas paredes da academia, traga-o para o meio do povo, da platéia, que se identifica tanto com ele, que aplaudiu a todos vocês, calorosamente, neste dia!

Como Arandir só me resta pedir de cada um, um beijo demorado, pois como a arte reflete o nosso espelho, pude me ver em cada um em cena, e me vi feliz, por ver atores tão empenhados num fazer teatral tão contagiante quanto esse!

Ah, e aproveitem Marfuz, pois em época de besteirol e moda da cultura popular, este encenador ainda conserva a maturidade dos mestres que sabem falar e fazer o que deve, com o tom certo, e não é metido a besta como um monte de artista baiano por ai!

Evoé e merda a todos!
Longa Vida aos Cinquentões!
Viva Nelson Rodrigues, o teatro brasileiro, nordestino, baiano, da capital e do interior!

Salvador 08 de novembro de 2008.

Comentário feito por Marcelo Benigno e publicado em seu blog no dia 09/11/2008. Para conferir, clique aqui.

Marcelo Benigno é ator, arte educador, diretor teatral e coordenador do Grupo Caçuá de Teatro, professor de teatro pela Ufba, artista popular e catinguiero arretado. Hoje, aluno especial de Mestrado do Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da Ufba.

domingo, 9 de novembro de 2008

Sobre Nelson Rodrigues


“Quem tem medo de Nelson Rodrigues? Teatrólogo de início saudado como genial e logo contestado, repórter apaixonado por futebol, feroz polemista [...], Nelson Rodrigues é uma esfinge a ser decifrada pelos que queiram entender a cena cultural brasileira de boa parte do século 20.” (Marcos Alvito)

Visto como um devasso por muitos e intitulado “anjo pornográfico” por ele mesmo, Nelson Rodrigues (1912-1980) é considerado um dos maiores dramaturgos brasileiros. Nascido na cidade do Recife (PE), o quinto filho dos catorze do casal Maria Esther Falcão e Mário Rodrigues, jornalista e ex-deputado federal, mudou-se com a família, para o Rio de Janeiro, quando seu pai passou a ser perseguido politicamente. Aos treze anos, iniciou a sua carreira jornalística como repórter na seção policial do jornal A manhã, fundado pelo seu pai na década de 20.

Escritor e jornalista, Nelson Rodrigues escreveu sua primeira peça, A mulher sem pecado, em 1941. Mas foi com Vestido de noiva, sua segunda peça, em 1943, que o dramaturgo entrou para história do teatro brasileiro, ao substituir o surrado cenário das comédias de costumes pelo espaço amplo dos planos da realidade, da memória e da alucinação. A encenação, assinada pelo polonês Ziembinski no mesmo ano, é considerada por alguns estudiosos como o marco do teatro moderno no Brasil.

A obra de Nelson Rodrigues inclui 17 textos teatrais, além de contos, romances, críticas e crônicas; entre estas as que integram o conjunto intitulado “A vida como ela é...”, fonte de inspiração do espetáculo Atire a primeira pedra. Com linguagem simples e direta, seus textos tratam a obsessividade e o materialismo das personagens com profunda ironia, ao focar o cotidiano trágico e grotesco dos subúrbios e das classes médias brasileiras.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Encontro, Reencontro e Despedida


“Atire a primeira pedra" deixa em cada um de nós o gosto azedinho-doce de uma primavera: a estação, que serve como ponto de chegada e de partida, para Os 50'tões - o grupo de amigos, a trupe de atores. Da caravana, que se formou nos 50 anos da Escola de Teatro da UFBA, poucos se despediram e cinco se somaram ao longo do caminhar, ora lento, ora acelerado demais, dos últimos três anos. Juntos, com muito trabalho, cooperação, paixão, frustração e descobertas, chegamos a Nelson e às suas personagens em carne viva.

“A vida como ela é...” – inquietante, instintiva, sedutora, tragicômica, melodramática, desconcertante e, por vezes, desagradável – apresentada a dezenove jovens atores que se entregam, se perdem e se encontram na complexidade dos homens e mulheres rodrigueanos. Um encontro com a dramaturgia de Nelson, um reencontro com os diretores do primeiro espetáculo da trupe, Luiz Marfuz e Iami Rebouças, com os velhos companheiros do curso de direção, além de outros importantes profissionais e amigos que se juntaram à nossa caravana até chegarmos a este palco.

Nesta noite, subimos mais um degrau da nossa história em busca de nos tornar operários do teatro. É com um pé no sonho e outro no trabalho que apresentamos este espetáculo, nem grande, nem pequeno, nem certo, nem errado. É este o teatro que aprendemos a fazer, com a emoção, a vontade e a fé que trazemos à flor da pele.
Obrigado a todos.

Os 50’tões
Por Ana Paula Brasil

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Os Desafios em Adaptar “A vida como ela é...”


Atirar a primeira e todas as pedras na medula do abismo humano. Esse foi um dos maiores desafios em adaptar contos de “A vida como ela é...”. As palavras “farpadas” de Nelson Rodrigues, esse autor, que para mim é o poeta dos abismos, fascinaram-me.

Ao lado da professora Cleise Mendes e com o grande apoio do diretor Luiz Marfuz, fui oportunizado a mergulhar e não emergir desse universo conhecido, mas, muitas vezes, posto debaixo do tapete, que é o instinto humano.

Felizmente, deixando seus personagens em carne viva pude, com muita Curiosidade, ser conduzido ao Altar da Morte, experimentar um Sacrilégio saboroso e assim, pôr em “Cheque” o amor ao teatro. Essa arte decepante e arrebatadora.

É hora de rasgar o verbo, arrancar todas as máscaras, expor os monstros, despir a alma, pois a carne viva de nossos corpos estará exposta a tudo e a todos.

Por Fernando Santana

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Uma Tragicomédia Brasileira


Atire a primeira pedra seria título da coluna diária de Nelson Rodrigues, no jornal A última hora, em 1961, mudado para “A Vida como ela é...”, pelo próprio autor. Uma coluna que misturava fato e ficção, retirados da mente fértil e imaginativa do jornalista, escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues.

O espetáculo se apropria deste título para fazer um magro recorte no universo das quase duas mil crônicas publicadas pelo autor. Um recorte que se aproxima do olhar feminino, numa época marcada pela lei do pai, em pleno colapso da classe média brasileira. Os textos mostram mulheres que explodem seus desejos reprimidos e fazem valer sua vontade, pagando por isto o melhor e o pior preço. Uma fratura na ordem patriarcal.

Referências do melodrama deram pistas para a encenação: trocas, reviravoltas, revelações, exageros e surpresas; facetas revisitadas à luz do diálogo com outras convenções: a estética de filmes b, o clown, a chanchada, o kitsch, a teatralidade escancarada - tudo embalado pelo tão amado e odiado universo da “música brega brasileira”, que, hoje, integra, sem dúvida, o imaginário da nossa música popular. Ali pululam temas e obsessões de Nelson: juras de amor e morte, traições, vinganças, assassinatos, ciúmes e maldições. Ser ou não ser brega não é uma questão. É uma opção e depende do lado em que você está.

Não por acaso, o kitsch nos orientou neste processo. Numa de suas acepções modernas, o termo kitsch – do alemão verkitschen - quer dizer trapacear, negar o autêntico. E é assim também que se ergue o espetáculo, em que cada cena fala por si; como um jogo de enganos, de faz de conta, em que o ator brinca com convenções do teatro e do cotidiano, troca de papéis, arma e desarma situações, mistura cópia e original – para trazer um lado tragicômico da classe média brasileira.

São olhares e fazeres do ator-contador e do ator-mostrador, que se alternam e se repetem em tipos como: homem traído, mulher voluptuosa, pai castrador, mãe possessiva, filho rebelde, esposa honesta, todos igualmente santos e canalhas, vistos pela lente da ironia e do humor. De um jeito brasileiro, como dizia Nelson: “Um povo que ri da própria desgraça pode ser miserável. Mas jamais derrotado.” É o que os autores-adaptadores Cleise Mendes e Fernando Santana – este também ator e integrante do elenco - procuram mostrar nas dez crônicas selecionadas para a montagem.

Foi um presente trabalhar com este elenco, que dirigi pela primeira vez, em 2006, quando entrou na Escola de Teatro. Estes atores maravilhosos têm algo em comum: são incomuns; interpretam, produzem, divulgam, correm atrás de cenários, figurinos, adereços, põem mãos e pés no chão do teatro. Especialmente, agradeço a toda equipe do Módulo VI de Interpretação Teatral: Iami Rebouças, Tânia Soares, Cleise Mendes, Roberto Abreu, Luciano Bahia. E, sem sombra de dúvida, aos loucos e generosos artistas que se doaram a esta empreitada: Rodrigo Frota, Miguel Carvalho, Marilza Oliveira, Fernanda Paquelet, Marcelo Jardim, Roberto Laplane, Luis Antonio e Polis Nunes.

Não tenho intenção de deixar nenhuma mensagem edificante com este espetáculo. Ele é o que ele é. Deixo esta tarefa para os patrulheiros de plantão. E cada qual que tire suas conclusões, como Nelson Rodrigues o fez, certa feita, ao falar de si: “Minhas peças são obras morais. Deveriam ser encenadas na escola primária e nos seminários.” Acredite quem quiser.

Por Luiz Marfuz
Diretor de "Atire a primeira pedra"

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Luiz Marfuz em entrevista sobre "Atire a primeira pedra"


Juliana Maia – Qual avaliação o senhor faz da Escola de Teatro em relação à formação de atores?

Luiz Marfuz - A Escola é um celeiro de formação de atores, que vem atraindo interessados de toda parte do Brasil. Alie-se a isto o programa de pós-graduação – que atingiu grau de excelência junto ao ministério da Educação – que fomenta a pesquisa artística, a prática teatral e reflexão sobre as artes cênicas.

Maia – Qual a expectativa que esses atores podem ter em relação ao mercado de trabalho baiano?

Marfuz - A escolha da carreira do ator é sempre um desafio, diante de um mercado instável e informal. A profissão do ator foi regulamentada em 1978, mas poucos têm emprego seguro ou carteira assinada. É uma luta. Interpretar, produzir, fazer cenário, figurino, dar aula, sobreviver e ainda preparar diariamente seu corpo e sua voz. É matar um leão por dia.

Maia – Como o senhor recebeu o convite para dirigir esse espetáculo de formatura?

Marfuz - Tenho uma ligação com esta turma, desde quando ela entrou na Universidade, em 2006, quando dirigi a mostra “Teatro à flor da pele”, junto com a Iami Rebouças. Foi um encontro de vontades. Eles queriam que os dirigisse e eu queria dirigi-los.

Maia - Em relação aos 50’Tões, como o senhor caracterizaria o grupo? Heterogêneo, ou os atores estão no mesmo nível?

Marfuz - Um grupo com 19 atores não poderia ser homogêneo em nada. Os atores são diferentes em tudo. Não se trata de uma questão de estar ou não estar no mesmo nível, porque em arte as mudanças, às vezes, são súbitas. O processo criativo dita regras inimagináveis. O grupo é talentoso e tem um potencial enorme.

Maia – Como está a construção do espetáculo “Atire a primeira Pedra"? Como se deu a escolha de atores para os papéis?

Marfuz - Já estamos em pleno processo de ensaios gerais. E escolha dos papéis levou em conta a o perfil das personagens, o tipo físico e a tendência para determinados gêneros: melodrama, tragédia, comédia, farsa etc.

Maia – Por que Nelson Rodrigues?

Marfuz - É um dos maiores dramaturgos brasileiros. Ele escreve para o ator. É como se estivesse vendo o que está li. Nelson consegue aliar sua experiência de jornalista e escritor à de dramaturgo para plantar o mais contundente conjunto de peças da dramaturgia brasileira. Ele conhece a alma do brasileiro como ninguém. Aquilo que nenhum de nós confessaria ao padre ou ao psicanalista, ele põe na boca das personagens, que estão sempre em carne viva. E com uma ironia inconfundível.

Maia – Nelson Rodrigues já foi montado incontáveis vezes. Qual o diferencial desta montagem?

Marfuz - O espetáculo tem música, dança, interpretação. São adaptações teatrais de dez crônicas de Nelson Rodrigues, de “A vida como ela é...”. Ali está um pouco da faceta da classe média brasileira, com seus tipos, obsessões e taras. Mas é um espetáculo que toma o partido do humor, aliando a música brega brasileira com várias convenções teatrais, a exemplo do melodrama.

Maia – Qual a participação da direção na adaptação do texto?

Marfuz - A adaptação é de Cleise Mendes e Fernando Santana, este um jovem de 22 anos, que integra o elenco da montagem. Foi uma generosidade de Cleise dividir esta adaptação com ele. Minha participação se deu mais na escolha dos contos, que privilegiam o olhar feminino, a explosão do desejo das mulheres numa época em que a ordem patriarcal começa a ruir.

Maia – O que o senhor destacaria em relação à montagem “Atire a Primeira Pedra”?

Marfuz - O trabalho do elenco, que canta, dança e interpreta e o humor deliberado que instaura uma tragicomédia à brasileira.

Luiz Marfuz é diretor do espetáculo "Atire a primeira pedra".

Por Juliana Maia
Assessora de Imprensa

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Os 50'tões sobre "Atire a primeira pedra"

Ana Paula Brasil
O teatro é um lugar onde se redescobre a vontade, a paixão, o instinto. “Atire a primeira pedra” me proporcionou este encontro e a instigante oportunidade de recriar a vida através das lentes de Nelson.

Ana Sofia Heimer
“Atire a primeira pedra”... um desafio, às vezes melodramático, às vezes tragicômico, o teatro como a vida, a vida como ela é."

Ariane Souza
Nelson é assim: o eterno desafio de suscitar um teatro que ferve, vibra, assusta e seduz. A inefável melodia incestuosa da carne viva com o sangue em flor...do Teatro à Flor da Pele...

Camila Guilera
"Me inquieta, lógico". Me desconcerta por fascínio e repúdio. Não sei até que ponto o universo de Nelson Rodrigues me atrai e o quanto me trai. Sei que preciso vivê-lo na carne para descobrir. Descobrir-me.

Daiane Leal
Nelson Rodrigues não é solidário nem no câncer!

Daniel Calibam
Brinquei, chorei, gozei, para poder ser visto através do buraco da fechadura.

Danielle Rosa
No duro, sou uma mulher rodrigueana. Delicada e agressiva, sensível e obscena, um universo de contradições.

Danilo Cairo
De maneira cada vez mais intensa e verdadeira, sinto as dores e as delícias do teatro na minha própria carne. Realmente, acredito que o tempo vai dando razão a Nelson Rodrigues.

Fernando Santana
Faço minhas as palavras de Shakespeare: “Quando nascemos, choramos por termos vindo para este grande palco de loucos.”

Ilona Wirth
Reconheci em Nelson Rodrigues o meu estranho prazer pelo "deleite dos bondes que não chegam nunca". Desejo a calma para pesquisar um teatro sem pressa, que não anseie somente pela apoteose dos aplausos, mas saiba valorizar também a grande vaia.

Jane Santa Cruz
Desafio. Tenho atração por essa palavra e no teatro, lugar em que o fim dá lugar ao começo, me jogo, jogo, me perco, é necessário. Percebo que para atingir algo, antes tenho que atingir a mim mesma.

Joedson Silva
O sentimento que tenho pelo teatro é perfeitamente comparável ao amor em carne viva de um personagem rodrigueano. Há nele uma pulsação voraz.

Lara Couto
Exigida, estimulada, esgarçada. Quando me senti confiante, tiraram meu chão e não me deram asas. Onde irei cair? Não sei, a gente nunca sabe...

Liliana Matos
Acessar o universo de Nelson Rodrigues é deparar-se com os instintos e pulsões da existência.

Lílith Marques
Não sei o que de fato me leva a ser atriz, mas a gente vai aprendendo que fazer teatro guarda, ainda, o artesanato de lapidar a gente mesmo. Acredito na construção. Do trabalho, do tempo, dos grupos, das relações, do ator. Das reticências de “A vida como ela é..."

Milena Flick
Encarei o desafio de revelar a mulher que sou através da menina que teima em me esconder...

Monique Monteiro
O palco faz-se cais de partida e, da valsa, o salão; ringue de morte e de vida, do suor e do êxtase, do real amor e da ilusão. Assim é “Atire a Primeira Pedra”: début e despedida, o irromper da borboleta, uma grande anunciação.

Ramona Azevedo
Diante do espelho, olho bem para dentro de mim. Enfrento. Não somos anjos, nem demônios. Somos ambos, ao mesmo tempo. Assim subo no palco, brincando com a vida e a morte. No fim, só é sincero o amor e o ódio.

Ruhan Álvares
Nelson Rodrigues era como o “bicho papão” para mim, mas a forma como ele me foi apresentado... Vocês acreditam em amor à primeira vista?

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Doce Cabaré


O meu coração
Tem sete notas só
Verde e amarelo
Ré, Mi, Fá, Sol, Lá, Si, Dó
Levo minha vida
Do jeito que ela é
Tenho uma família
Que é um doce cabaré

Alô, mamãe
Alô, papai
O meu tesão
Pra onde vai
Juro pra vocês
Que serei um bom menino
Volto ao paraíso
Pra nascer mais uma vez.

Composição: Luiz Marfuz e Eduardo Torres.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Asma *


(Num Cinema)

MALVINA- Tu acreditas em Deus?
SIMÃO- Depende.
MALVINA- Como depende?
SIMÃO- Acredito, quando estou com asma.
MALVINA- (espantada) Simão!
SIMÃO- Com asma, eu acredito, até, em Papai Noel!
MALVINA- (escandalizada) É pecado! Deus castiga, Simão! Deus castiga!(levanta-se)
SIMÃO- (sôfrego, indo atrás dela) Perdoa, meu anjo! Perdoa!
MALVINA- Você é mau, Simão!
SIMÃO- Escuta, coração...
MALVINA- Como pode?!
SIMÃO- (detendo-a) Toda a minha fé é de fundo asmático. Quando a asma me ataca, enlouqueço! (Pausa. Baixo) Quando eu me casar, hei de ser fiel. Mas podes ficar certa: como tudo o mais, a minha fidelidade vai ser de fundo asmático.
MALVINA- (agarrando-se a ele) Tu não me trairás nunca?
SIMÃO- (sorrindo) Com a minha asma? Eu não agüento com uma, quanto mais com duas mulheres!
MALVINA- Topo fome, pancada, tudo, menos traição. Traição, nunca!
SIMÃO- (agarra Malvina e a beija com furor) O asmático é o único que não trai!(tem um ataque de asma)

(Casa do casal)

MALVINA- Sabem o que foi que eu descobri?
AMIGA 1- Fala.
MALVINA- Marido asmático é um altíssimo negócio!
AMIGA 3- Como assim?
MALVINA- Pelo menos ele não anda em farras. (triunfante) Nunca serei traída!
(Palmas e risos entusiasmados)
AMIGA 4- Você ganhou na loteria!
AMIGA 5- Esse seu marido é uma benção!
AMIGA 1- Parabéns! Aproveita, aproveita!
AMIGA 2- (repressora) O homem fiel nasceu morto! Sossega a periquita!
MALVINA- Mas vejas tu!
TODAS (para Amiga 2) - Mas vejas tu!
MALVINA- Por que é que eu terminei com o Quincas? Ele tinha uma saúde formidável e o que me adiantou?
TODAS (para Amiga 2) - Mas vejas tu!
MALVINA- Me traia com todo o mundo! Não respeitava minhas irmãs. Nem as minhas amigas!
TODAS (excitadíssimas, para Malvina)- Mas vejas tu!
AMIGA 1- (possessa) Mas o Quincas, o antecessor de Simão, tem uns músculos...!
AMIGA 3- (voluptuosa) De impressionante perfil, moreno...!
AMIGA 4- (interrompendo, com urtiga no sangue) Como um hawaiano de Hollywood!
AMIGA 5- (libidinosa) E aquela boca!!
MALVINA- (incisiva) Rompi com ele por causa das suas infidelidades deslavadas!

(Saem as amigas)

SIMÃO- (nu da cintura pra cima) Amor, você a viu a minha camisa?
MALVINA- (avançando pra ele, querendo beijá-lo) Pra quê camisa?
SIMÃO- (gaguejando, recuando) Para me proteger... essa corrente de ar... vai me matar...(correndo dela) Calma no Brasil...sossega a periquita...

(Malvina o agarra e ele tem um novo ataque de asma, mas, automaticamente, mune-se da sua bombinha e controla a asma)

MALVINA- (sem entender) Ué?! Por que está me evitando desse jeito?
SIMÃO- Bem, é o seguinte: fui ao médico hoje à tarde. E ele disse que eu não devia me emocionar.
MALVINA- Não entendo...
SIMÃO- O beijo atrai a asma! Não exageremos, meu anjo.
MALVINA- (doce) Mas, nem um beijinho tu podes me dar...
SIMÃO- (desvencilhando-se) O médico...
MALVINA- (interrompendo) Vai em outro médico... me beija!
(Ela, mais uma vez, tenta beijá-lo e a asma o domina. Ele, instintivamente, afasta Malvina)
SIMÃO- (brusco) Por favor, Malvina! Você só pensa em sexo!
AMIGA 2- E era sempre assim. Aquela situação já se repetia com freqüência. Não podia dar-lhe um beijinho que o marido só faltava por os pulmões pela boca. Casaram-se. A lua-de-mel foi uma tragédia em 28 atos. Mal ela tentou beijá-lo e ele manifestou-se com um palmo de língua pra fora na sua maldita e insistente asma. Ela ficou embasbacada. Foi de arder!

(Casa da mãe)

MALVINA- Mamãe, eu sou a esposa que não foi beijada!
MÃE- (tricotando) É a assim mesmo, minha filha, depois piora. A tendência é piorar.
MALVINA- (desesperada) Ele não me ama. Eu sempre quis ter um marido que eu amasse. Que eu pudesse beijar na boca...
MÃE- Pra quê amor no casamento? O amor é o pior remédio para um casal, minha filha. Aliás, amor e casamento são coisas completamente diferentes. Não combinam.
MALVINA-(em seu desespero) E agora ele resolveu abolir o beijo! Eu quero morrer!
MÃE- Caso sério! Caso sério!
AMIGA 3- Asfixiada com aquela situação ela enche os pulmões de coragem e liga para o seu antigo namorado: O Quincas.
MALVINA- (no telefone) Escuta, você pode ser cínico, sujo, canalha, imoral, mas sabe amar.


(Num apartamento assim, assim, Malvina despeja-se nos braços de Quincas e o beija com muita sede)

Por Fernando Santana
*Adaptado do conto "Homem Fiel" da obra "A vida como ela é" de Nelson Rodrigues. Este conto não foi incluído no texto final de "Atire a primeira pedra".

terça-feira, 21 de outubro de 2008

A Esbofeteada *


Arlinda – Já sabes da nova, Ismênia? Sabes que Gracinha e Sinval voltaram da lua-de-mel, semana passada?
Ismênia – Ai, Arlinda, nem me fale, nem me fale nessa criatura. Aquela ali é uma des-graça, isso sim.
Arlinda – Pois é, menina. Mas eu lhe digo uma coisa, eu tenho para mim que tudo começou naquele dia em que você contou a história do tapa.
Ismênia – (Em outro foco e momento, no passado, conversando entre amigas) Vou te contar! Como meu namorado, eu confesso francamente: nunca vi! Tem um gênio! Que gênio!
Arlinda – Feroz?
Ismênia – Se é feroz? Nossa! Precisa uns dez para segurar! (Olha para os lados e baixa a voz) Vocês sabem o que é que ele fez comigo? Gracinha – O quê?
Ismênia – (Fazendo-se de rogada) Não sabem?
Arlinda – Ah, conta! Conta, Ismênia!
Ismênia – Foi o seguinte: ele cismou que eu tinha dado pelota para o Nemésio. E não conversou: me sentou a mão, direitinho!
Gracinha – E tu?
Ismênia – Eu? (Erguendo o rosto, feliz, envaidecida da bofetada) Eu vi estrelas!

(Silêncio. Admirada, Arlinda parece invejar a agressão que a outra sofrera, enquanto que Gracinha, mais impressionada ainda, contém um muxoxo de reprovação, crispando-se de asco e deslumbramento.)

Ismênia – Eu apanhei! Eu! Comigo é assim: gosto de homem, homem. Escreveu não leu, o pau comeu. Senão, não tem graça.
Arlinda – (no presente, com Ismênia) Ah, minha filha, e você sabe o que ela me disse mais tarde, quando você foi embora, né? Tão cínica! Quem diria.
Arlinda – (no passado, a sós com Gracinha) Quem diria, hem! Logo o Sinval! Há quem diga que falta-lhe a base física da coragem. Aquelas unhas todas tratadinhas. Custa a crer que seja um violento. Não achas, Gracinha?
Gracinha – Sabe o que eu acho? Eu acho que, se um homem me esbofeteasse, eu dava-lhe um tiro na boca!
Arlinda – (no presente, relembrando os pensamentos que tivera naquele momento) Que tiro, que nada! Foi o que eu pensei, na época. A exaltação dessa aí é que nem cólera de passarinho. Mas depois fiquei com a minha cara no chão.
Ismênia – Pois é, aquele jeitinho meigo, doce. Quem quiser que se engane. Mas o que eu queria muito saber, mesmo, é como foi que eles começaram, de fato, essa relação.
Gracinha – (em outro foco) Elas (ou “Vocês”) têm razão. Acho que tudo começou com a história do tabefe que Ismênia levou. Eu fiquei tão indignada na época, que, por três dias, não pensei noutra coisa. E, no quarto... eu não resisti.
Gracinha - (em outro momento, no passado, falando para si) Ah, eu não resisto. Eu preciso falar com esse Sinval. Nem que seja passando um trote, sei lá. (Surpresa com o que acaba de dizer, olha com malícia para o telefone e, súbito, decide ligar)
Gracinha – (ao telefone) Sinval? Aqui quem fala é Zumira... prima do Barriga.
Sinval – (em outro foco) Barriga? Que Barriga?
Gracinha – É... Barriga... Barriga, amigo de Pato Preto.
Sinval – Pato Preto? Ahn?
Gracinha – Mas, enfim, eu tô te ligando pra dizer que andam falando uma coisa de você... que é de arder, é de amargar. Ai, eu nem sei se eu deveria dizer.
Sinval – Fala.
Gracinha – Barriga tentou até te defender, mas... Poxa, nem sei como falar.
Sinval – (entrando no jogo) Mas vem cá, você disse que é prima do Barriga, né? E qual é a sua graça?
Gracinha – Eu? Ah, não importa. O negócio é que andam falando absurdos de você. E aí eu queria saber se era verdade, sabe, pra você não ficar mal falado no pedaço.
Sinval – Hum.
Gracinha – Sabe quem é amicíssimo do irmão de sua namorada? Pato Preto. E ele disse que seu cunhado estava dando pinote por causa da notícia que anda circulando...
Sinval – (caricioso) Ô, mocinha, qual o seu nome?
Gracinha – Meu nome não interessa, já disse.
Sinval – Olha, se não disser o nome, eu desligo.
(Breve silêncio.)
Sinval – (irredutível, porém suave) Fala. Ou então eu desligo, ouviu? Qual a sua graça?
Gracinha – (sente que vai recuar, mas, subitamente, invade-lhe uma estranha coragem, e confessa) Sou eu, Gracinha. (Imediatamente arrepende-se de tê-lo feito)
Sinval – (transfigurado) Gracinha? Não é possível, não pode ser!
Gracinha – Sou eu sim.
Sinval – Então houve transmissão de pensamento! No duro que houve! Imagine que eu estava pensando em você, neste minuto! Agora mesmo!
Gracinha – Pensando em mim?
Sinval – (na sua efusão elétrica) Sim, em você. (doce) Penso em você sempre. Há muito tempo.
Gracinha – (com o coração disparado) E Ismênia?
Sinval – Ismênia é uma brincadeira, um passatempo, nada mais. Você, não. Você é outra coisa. Diferente!
Gracinha – Não acredito. Não é possível.
Sinval – Te juro, pela minha mãe, que é a coisa que mais prezo na vida. Te juro que é pura verdade! E tem mais, para te provar que o que eu sinto é batata, eu quero te ver amanhã. Topas?
Gracinha – O quê? Onde?
Sinval – No passeio público, às 15h, combinado?
Gracinha – Eu... eu não... (pigarreia) eu não sei.
Sinval – Ah, Gracinha, diz que sim. Diz que sim, por favor.
Gracinha – (depois de um profundo suspiro) Ok. Está bem. Combinado.
Sinval – Então até amanhã, minha linda. Um beijo.
Gracinha – (quase sem voz) Outro (desliga).
Gracinha – (com as pernas bambas) Ai meu Deus, e agora? E agora? (andando de um lado para o outro) Eu não deveria ter dito meu nome. Aliás, eu não deveria nem ter ligado! O que que eu fui fazer, meu Deus? E agora? Já sei. Não vou, pronto. Não vou e está acabado.
Gracinha – (foco anterior: narração) Mas eu fui. E lá ele foi mais decisivo ainda, mais evidente (Gracinha e Sinval aproximam-se, no centro do palco) e tão romântico!
Sinval – (no passeio público com Gracinha, no Passeio Público) Te vi, no máximo, o quê? Umas oito vezes, dez, talvez. Falei contigo pouquíssimo. Mas, assim ou assado, o fato é que te amo, te amo e te amo!
Gracinha - (narrando) Ah! Eu não duvidei. Acreditei nele, porque comigo também já se passava o mesmo, uma dessas paixões definitivas, reais e mortais. Então começaram os nossos encontros, às escondidas. Gracinha – (estreitada nos braços do amado) Ai, Sinval, eu só não sou mais feliz por causa de Ismênia. Eu fico só imaginando, no dia em que ela souber...
Arlinda – (outro foco, para Ismênia) E quando você soube, amiga. Lembras? Eu flagrei os dois juntinhos e fui correndo te contar. Me lembro nitidamente do escândalo que foi.
Ismênia – (discutindo com Gracinha) Tu és mais falsa do que Judas! Sua cobra criada! Amiga da onça! Mas escuta uma coisa, sua cretina. Escuta bem, cínica. Tu hás de apanhar e muito nessa cara!
Arlinda - (narrando) Ela não disse palavra. Estava lá, toda pálida, incapaz de uma reação.
Gracinha – (narra, numa espécie de disputa com Arlinda) É, o constrangimento da situação foi muito grande. Mas depois foi festa. (uma festa começa a ser montada no palco) Apesar do escândalo, aquilo foi bom, porque então nós dois pudemos oficializar nosso romance e mostrar, para quem quisesse ver, o carinho que sentíamos um pelo outro.
Gracinha - (beija Sinval, na festa, em casa de amigos) Não é, meu amor? (Gracinha tenta arrastar o namorado para a pista de dança, mas ele pretende jogar uma partida de sinuca com o amigo) Agora vamos dançar, querido.
Sinval – Ah, agora não, meu amor, eu quero jogar um pouquinho. Depois eu danço com você. Dança com o Carlinhos, por enquanto, ou com outro rapaz aqui da festa.
Gracinha – Você não tem ciúmes?
Sinval – Ciúmes de você? Não, meu bem.
Gracinha – (admirada) Por quê?
Sinval – Porque te amo.
Gracinha – Eu preferiria que tivesses ciúmes de mim.
Sinval – (achando graça) Ué!
Gracinha – (sentindo-se infantil ao repetir a frase que ouvira, não sabia aonde) Pois, “Sem ciúmes, não há amor”!
Sinval – Ora, parece criança!

(Sinval volta-se em direção à mesa de bilhar, mas ela o retém, segurando-o pelo braço)

Gracinha – E se eu te traísse? Tu farias o quê?
Sinval – Te perdoaria.
Gracinha – E se eu voltasse a trair?
Sinval – Se continuasses traindo, eu continuaria perdoando.

(Gracinha dá-se por vencida pela resposta do namorado e vai procurar um par para dançar, enquanto ele vai para a mesa de jogo. Gracinha arranja um par. Começam discretamente e, ao longo da música, a dança vai-se tornando cada vez mais chamativa. Depois ela e seu par vão sentar-se no sofá. No caminho, Gracinha pega uma bebida. Sinval joga sinuca dentro ou fora de cena, e ela conversa com seu parceiro de dança no sofá, bebendo muito e insinuando-se expressivamente para ele. Durante o desenrolar da ação, Ismênia e Arlinda conversam em outro foco)

Ismênia – (em outro foco, para Arlinda) Sabe o que me consola? Aqueles papelões que a gente ouvia falar dela.
Arlinda – E foram vários! Ela realmente mudou da água para o vinho.
Ismênia – De bonequinha para uma tremenda vadia!

(Quando a bebida acaba, ela vai atrás de outro rapaz, que segura um copo, em outro canto do salão. Pede-lhe a bebida e começa a se engraçar para ele. Os dois dançam de maneira extremamente chamativa e sensual. Todos na festa começam a abandonar o local. Entra Sinval. O par, assim que o vê, pigarreia e desaparece.)

Gracinha - (bêbada, encara o namorado, rindo) Ele me beijou, Sinval. Me beijou.

(Sem uma palavra, Sinval a derruba com uma tremenda bofetada. Ela cai longe, com os lábios sangrando. Enquanto ele a contempla e espera, ela aproxima-se, rastejando e abraça-lhe as pernas.)

Gracinha – (soluçando) Esperei tanto por essa bofetada! Agora eu sei que tu me amas e agora eu sei que posso te amar.

Por Monique Monteiro
*Adaptado do conto "A Esbofeteada" da obra "A vida como ela é" de Nelson Rodrigues. Este conto não foi incluído no texto final de "Atire a primeira pedra".

domingo, 19 de outubro de 2008

O Patife *


OLEGÁRIO- (furioso, agarrando-a pelo braço) Vem cá, Luzia, vem cá!
LUZIA- (sentando-se, apreensiva) O que foi?
OLEGÁRIO- (Senta-se. Traga fundo o charuto) Quero saber de ti o seguinte: é verdade que viajaste, ontem, com o Chaves, de lotação?
LUZIA- Por quê?
OLEGÁRIO- Apenas responde.
LUZIA- Viajei, sim. É verdade.
OLEGÁRIO- Carambolas! (traga fundo o charuto)
LUZIA- Mas, o que foi?
OLEGÁRIO- Tu sabes que eu não sou ciumento, não sabes?
LUZIA- Absolutamente!
OLEGÁRIO- Pois é. Mas tudo tem um limite. E o meu limite é, justamente, o Chaves! Tu podes viajar de lotação, de bonde, e, até, de canoa. Mas com o Chaves, não. Eu não quero!
LUZIA- Mas ele parece tão bonzinho.
OLEGÁRIO- (num berro) Bonzinho uma pinóia!(contendo-se, pausadamente) Qualquer um, menos o Chaves. (traga o charuto)
LUZIA- Mas o que ele...
OLEGÁRIO- (interrompendo) Imagina tu que morreu um amigo do Chaves, amigo de infância, amigo batata, mesmo! E tu sabes o que ele fez, o canalha?! Essa foi de arder! De lascar! Ele deu em cima da viúva em pleno velório, nas barbas do cadáver! Apalpou a viúva com o defunto presente! Um abutre!
LUZIA- (aterrada, toma o charuto das mãos dele e traga) É de fechar o comércio!
OLEGÁRIO- Te digo com pureza da alma, é o único canalha puro que eu conheço! O único! E olha, pra lhe ser mais claro: não quero nem que cumprimentes esse miserável!(toma o charuto de Luzia e traga)
LUZIA- Nem cumprimento?!(pega novamente o charuto)
OLEGÁRIO- (pigarreia) Cumprimentar, pode. Mas, só cumprimentar, percebeste? Nada de conversa, de bate-papo.
LUZIA- Conversa não tira pedaço!(traga o charuto)
OLEGÁRIO- (num berro) Tira, sim! Como é que se conquista? Pela papa. E dizem que nem um poste resiste a papa do Chaves. Um bico doce! Não, senhora, distância, ouviu? Muita distância!
LUZIA- Calma no Brasil! O petróleo é nosso! (traga o charuto)

(O casal dorme. Luzia acorda assustada)

LUZIA- (num impulso) Sonhei com o Chaves, imagine.
OLEGÁRIO- (engasga) Sonhou?!
LUZIA- Na verdade, tenho sonhado! Mas é natural, você só fala nele!
OLEGÁRIO- (nervosíssimo, acende um charuto) Que espécie de sonho você teve com o Chaves? O que é que houve no sonho? Houve bandalheira? (traga)
LUZIA- (estaca) Não digo!
OLEGÁRIO- Não diz por quê? Houve alguma pouca vergonha no sonho!
LUZIA- Bobagem sua. Foi só um sonho.
OLEGÁRIO- (explodindo) O sonho é uma coisa infecta! Nunca te esqueças, o Chaves é o único canalha integral do Brasil! Essa conversa toda me deu até vontade de... Eu vou ao banheiro!(sai)
(Em outra área do palco. Chaves está atrás de uma tela que deixa visível apenas a sua sombra)
LUZIA- (no telefone) Sou a Luzia, noiva do Olegário...
CHAVES- Ah, sim! Já sei de quem se trata...
LUZIA- Meu noivo fala tão mal de você que resolvi telefonar.
CHAVES- (rindo) Ele tem razão em falar mal.
LUZIA- (sem entender) Tem?!
CHAVES- Com um material de primeira na mão qualquer um se sentiria ameaçado. LUZIA- Não diz isso.
CHAVES- (malicioso) Digo, sim. Já me conheces à algum tempo. Responde você, sinceridade: achas que sou o que o seu marido diz?
LUZIA- (derretida) Pelo contrário, te acho normalíssimo!
CHAVES- Vamos deixar de nove horas!
LUZIA- Como assim?
CHAVES- Quero te ver hoje.
LUZIA- (assustada) Esquece da minha situação?! Sou noiva.
CHAVES- Noiva não é paralelepípedo.
LUZIA- Isso não está certo.
CHAVES- Você não pode ser vista comigo, claro. Mas há um remédio, uma solução, meu anjo. É o seguinte: eu arranjo um lugar discretíssimo, onde possamos conversar, calma e docemente. Tu não achas que é uma idéia fabulosíssima?!
LUZIA- Não acredito em homem!
CHAVES- (ri) E acreditas em quem? Em você mesma? Escuta: Você sairá como entrou. (sussurrando) Faz a experiência, faz! Juro que não te darei nem um beijinho!
LUZIA- (cedendo) Vou, pronto, vou!(numa crescente) Mas se tocares em mim, num fio do meu cabelo que seja, me mato, ouviu? Me mato!(desliga)

(No lugar assim, assim. Luzia está sentada esperando Chaves. Com o passar do tempo, ela fica apreensiva e demonstra sinais de irritação e cansaço. Chega Olegário e pára diante dela que fica gelada, pálida, pregada no chão)

OLEGÁRIO- O Chaves mandou dizer que não virá hoje, mas virá amanhã. (sai)



Por Fernando Santana
*Adaptado do conto "Patife" da obra "A vida como ela é" de Nelson Rodrigues. Este conto não foi incluído no texto final de "Atire a primeira pedra".

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Rodrigueano

Nelson conversa com o leitor na porta de uma casa no subúrbio carioca:

- É decadente!

- Não, Nelson. É só uma família.
- É batata, fulano.
- Dúvido!
- No duro! Queres ver?

Inicia-se um conto e a vida é só como ela é...


Por Ana Paula Brasil