domingo, 19 de outubro de 2008

O Patife *


OLEGÁRIO- (furioso, agarrando-a pelo braço) Vem cá, Luzia, vem cá!
LUZIA- (sentando-se, apreensiva) O que foi?
OLEGÁRIO- (Senta-se. Traga fundo o charuto) Quero saber de ti o seguinte: é verdade que viajaste, ontem, com o Chaves, de lotação?
LUZIA- Por quê?
OLEGÁRIO- Apenas responde.
LUZIA- Viajei, sim. É verdade.
OLEGÁRIO- Carambolas! (traga fundo o charuto)
LUZIA- Mas, o que foi?
OLEGÁRIO- Tu sabes que eu não sou ciumento, não sabes?
LUZIA- Absolutamente!
OLEGÁRIO- Pois é. Mas tudo tem um limite. E o meu limite é, justamente, o Chaves! Tu podes viajar de lotação, de bonde, e, até, de canoa. Mas com o Chaves, não. Eu não quero!
LUZIA- Mas ele parece tão bonzinho.
OLEGÁRIO- (num berro) Bonzinho uma pinóia!(contendo-se, pausadamente) Qualquer um, menos o Chaves. (traga o charuto)
LUZIA- Mas o que ele...
OLEGÁRIO- (interrompendo) Imagina tu que morreu um amigo do Chaves, amigo de infância, amigo batata, mesmo! E tu sabes o que ele fez, o canalha?! Essa foi de arder! De lascar! Ele deu em cima da viúva em pleno velório, nas barbas do cadáver! Apalpou a viúva com o defunto presente! Um abutre!
LUZIA- (aterrada, toma o charuto das mãos dele e traga) É de fechar o comércio!
OLEGÁRIO- Te digo com pureza da alma, é o único canalha puro que eu conheço! O único! E olha, pra lhe ser mais claro: não quero nem que cumprimentes esse miserável!(toma o charuto de Luzia e traga)
LUZIA- Nem cumprimento?!(pega novamente o charuto)
OLEGÁRIO- (pigarreia) Cumprimentar, pode. Mas, só cumprimentar, percebeste? Nada de conversa, de bate-papo.
LUZIA- Conversa não tira pedaço!(traga o charuto)
OLEGÁRIO- (num berro) Tira, sim! Como é que se conquista? Pela papa. E dizem que nem um poste resiste a papa do Chaves. Um bico doce! Não, senhora, distância, ouviu? Muita distância!
LUZIA- Calma no Brasil! O petróleo é nosso! (traga o charuto)

(O casal dorme. Luzia acorda assustada)

LUZIA- (num impulso) Sonhei com o Chaves, imagine.
OLEGÁRIO- (engasga) Sonhou?!
LUZIA- Na verdade, tenho sonhado! Mas é natural, você só fala nele!
OLEGÁRIO- (nervosíssimo, acende um charuto) Que espécie de sonho você teve com o Chaves? O que é que houve no sonho? Houve bandalheira? (traga)
LUZIA- (estaca) Não digo!
OLEGÁRIO- Não diz por quê? Houve alguma pouca vergonha no sonho!
LUZIA- Bobagem sua. Foi só um sonho.
OLEGÁRIO- (explodindo) O sonho é uma coisa infecta! Nunca te esqueças, o Chaves é o único canalha integral do Brasil! Essa conversa toda me deu até vontade de... Eu vou ao banheiro!(sai)
(Em outra área do palco. Chaves está atrás de uma tela que deixa visível apenas a sua sombra)
LUZIA- (no telefone) Sou a Luzia, noiva do Olegário...
CHAVES- Ah, sim! Já sei de quem se trata...
LUZIA- Meu noivo fala tão mal de você que resolvi telefonar.
CHAVES- (rindo) Ele tem razão em falar mal.
LUZIA- (sem entender) Tem?!
CHAVES- Com um material de primeira na mão qualquer um se sentiria ameaçado. LUZIA- Não diz isso.
CHAVES- (malicioso) Digo, sim. Já me conheces à algum tempo. Responde você, sinceridade: achas que sou o que o seu marido diz?
LUZIA- (derretida) Pelo contrário, te acho normalíssimo!
CHAVES- Vamos deixar de nove horas!
LUZIA- Como assim?
CHAVES- Quero te ver hoje.
LUZIA- (assustada) Esquece da minha situação?! Sou noiva.
CHAVES- Noiva não é paralelepípedo.
LUZIA- Isso não está certo.
CHAVES- Você não pode ser vista comigo, claro. Mas há um remédio, uma solução, meu anjo. É o seguinte: eu arranjo um lugar discretíssimo, onde possamos conversar, calma e docemente. Tu não achas que é uma idéia fabulosíssima?!
LUZIA- Não acredito em homem!
CHAVES- (ri) E acreditas em quem? Em você mesma? Escuta: Você sairá como entrou. (sussurrando) Faz a experiência, faz! Juro que não te darei nem um beijinho!
LUZIA- (cedendo) Vou, pronto, vou!(numa crescente) Mas se tocares em mim, num fio do meu cabelo que seja, me mato, ouviu? Me mato!(desliga)

(No lugar assim, assim. Luzia está sentada esperando Chaves. Com o passar do tempo, ela fica apreensiva e demonstra sinais de irritação e cansaço. Chega Olegário e pára diante dela que fica gelada, pálida, pregada no chão)

OLEGÁRIO- O Chaves mandou dizer que não virá hoje, mas virá amanhã. (sai)



Por Fernando Santana
*Adaptado do conto "Patife" da obra "A vida como ela é" de Nelson Rodrigues. Este conto não foi incluído no texto final de "Atire a primeira pedra".

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