segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Uma Tragicomédia Brasileira


Atire a primeira pedra seria título da coluna diária de Nelson Rodrigues, no jornal A última hora, em 1961, mudado para “A Vida como ela é...”, pelo próprio autor. Uma coluna que misturava fato e ficção, retirados da mente fértil e imaginativa do jornalista, escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues.

O espetáculo se apropria deste título para fazer um magro recorte no universo das quase duas mil crônicas publicadas pelo autor. Um recorte que se aproxima do olhar feminino, numa época marcada pela lei do pai, em pleno colapso da classe média brasileira. Os textos mostram mulheres que explodem seus desejos reprimidos e fazem valer sua vontade, pagando por isto o melhor e o pior preço. Uma fratura na ordem patriarcal.

Referências do melodrama deram pistas para a encenação: trocas, reviravoltas, revelações, exageros e surpresas; facetas revisitadas à luz do diálogo com outras convenções: a estética de filmes b, o clown, a chanchada, o kitsch, a teatralidade escancarada - tudo embalado pelo tão amado e odiado universo da “música brega brasileira”, que, hoje, integra, sem dúvida, o imaginário da nossa música popular. Ali pululam temas e obsessões de Nelson: juras de amor e morte, traições, vinganças, assassinatos, ciúmes e maldições. Ser ou não ser brega não é uma questão. É uma opção e depende do lado em que você está.

Não por acaso, o kitsch nos orientou neste processo. Numa de suas acepções modernas, o termo kitsch – do alemão verkitschen - quer dizer trapacear, negar o autêntico. E é assim também que se ergue o espetáculo, em que cada cena fala por si; como um jogo de enganos, de faz de conta, em que o ator brinca com convenções do teatro e do cotidiano, troca de papéis, arma e desarma situações, mistura cópia e original – para trazer um lado tragicômico da classe média brasileira.

São olhares e fazeres do ator-contador e do ator-mostrador, que se alternam e se repetem em tipos como: homem traído, mulher voluptuosa, pai castrador, mãe possessiva, filho rebelde, esposa honesta, todos igualmente santos e canalhas, vistos pela lente da ironia e do humor. De um jeito brasileiro, como dizia Nelson: “Um povo que ri da própria desgraça pode ser miserável. Mas jamais derrotado.” É o que os autores-adaptadores Cleise Mendes e Fernando Santana – este também ator e integrante do elenco - procuram mostrar nas dez crônicas selecionadas para a montagem.

Foi um presente trabalhar com este elenco, que dirigi pela primeira vez, em 2006, quando entrou na Escola de Teatro. Estes atores maravilhosos têm algo em comum: são incomuns; interpretam, produzem, divulgam, correm atrás de cenários, figurinos, adereços, põem mãos e pés no chão do teatro. Especialmente, agradeço a toda equipe do Módulo VI de Interpretação Teatral: Iami Rebouças, Tânia Soares, Cleise Mendes, Roberto Abreu, Luciano Bahia. E, sem sombra de dúvida, aos loucos e generosos artistas que se doaram a esta empreitada: Rodrigo Frota, Miguel Carvalho, Marilza Oliveira, Fernanda Paquelet, Marcelo Jardim, Roberto Laplane, Luis Antonio e Polis Nunes.

Não tenho intenção de deixar nenhuma mensagem edificante com este espetáculo. Ele é o que ele é. Deixo esta tarefa para os patrulheiros de plantão. E cada qual que tire suas conclusões, como Nelson Rodrigues o fez, certa feita, ao falar de si: “Minhas peças são obras morais. Deveriam ser encenadas na escola primária e nos seminários.” Acredite quem quiser.

Por Luiz Marfuz
Diretor de "Atire a primeira pedra"

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